Uma poética da leveza*

Entrevista com Javier Sologuren.

[Ciberayllu]

Floriano Martins

Autor de uma obra tão extensa quanto fertilíssima em seu tratamento com a linguagem, suas reentrâncias imagéticas e delicado sensualismo, o peruano Javier Sologuren (1921), a exemplo de inúmeros outros intelectuais que lhe são contemporâneos, também não se furtou à ação cultural, em seu caso destacando-se sobretudo pelo admirável trabalho realizado como editor — Las Ediciones de La Rama Florida representa um importante capítulo do mundo editorial peruano — e tradutor. Um dos momentos desta sua atividade diz respeito a uma série de antologias de poetas brasileiros que organizou para o Centro de Estudos Brasileiros, em Lima, no período compreendido entre 1977 e 1985. Acrescente-se a estas atividades a organização da Antología general de la literatura peruana (1981), volume publicado no México e que apresenta uma digna mostra desta poesia que também se inclui como outra das grandes tradições poéticas latino-americanas. Publicou ainda o extenso Gravitaciones & tangencias (1988), que reúne uma série de ensaios seus sobre poetas de vários países e que, de certa maneira, integram o seu diálogo com o mundo.

Sua poesia inclui livros como La gruta de la sirena (1961), Folios de El enamorado y la muerte (1980), El amor y los cuerpos (1985) e Vida continua — poemário originalmente publicado em 1966, seu título seria utilizado por Sologuren, a partir de 1971, para definir o conjunto de sua obra. Acerca de sua poética em si, bem o define o poeta brasileiro Sérgio Campos, ao analisar o livro Poemas 1988 e salientar ali "a consagração da poética do espaço, das dimensões, da experiência sensível, obra da maturidade e da capacidade de refletir o mundo de um grande poeta. Italo Calvino, ao formular seus Six memos for the next millenium, colocou em primeiro lugar a leveza, e o fez em contraposição ao peso. Sologuren parece ilustrar Calvino nesta proposição: não a leveza como sinônimo de pobreza intelectual, mas um exercício de sutileza, de raciocínio e de capacidade de abstração."

Este essencial equilíbrio que sua poesia consegue alcançar entre ética e estética, e que lhe dá uma leveza extraordinária, leveza profunda, medida pela precisão e concisão de suas imagens, certamente que é fruto disto que Jorge Rodríguez Padrón situa como sua opção inequívoca: "abismar-se na vertigem da criação, vagar entre os signos da noite" (valendo aqui lembrar que a noite é possivelmente a mais abarcadora de suas polissêmicas metáforas). O que significa para você exatamente este "abismar-se na vertigem da criação"? Como lhe toca a poesia?

— É certo que o processo de criação, meu poetizar, se assim se quer, produz-se sempre em termos de uma relação bipolar entre o ético e o estético; entre um dever ser, paradigmático, do texto (uma meta expressiva obscura e quase penosamente entrevista), de uma parte, e, de outra, a verbalização dessa experiência em formas que conjuguem transparência, liberdade e conciliador equilíbrio. Esta relação traz, por conseqüência, como se pode inferir, o inevitável afloramento de uma tensão interna que, por sua vez, transcreve uma temperatura anímica sui generis: sentimento de opressão, de incômoda gravidez. Ao "entrar" na escritura de um poema careço inteiramente do conhecimento prévio de sua "saída" pertinente, a noção de um rumo por seguir que, às vezes, pode ir clareando paulatinamente, ao longo da escritura, e, em outros casos, não se acha bússola ao navegar nestas águas incertas, somente rasgões, cintilações, em meio à obscuridade.

Além do mais, penso que esta situação que atravesso não deve ser, no fundo, muito distinta da que deve se apresentar a todo poeta em transe de escritura.

A bem conhecida agudeza crítica de Jorge Rodríguez Padrón — tal como me recordas — deu com a formulação precisa: "abismar-se na vertigem da criação, vagar entre os signos da noite". Todo o exposto nas linhas precedentes não vem a ser senão sua desfiada explicativa. Contudo, retomarei o fio e seguirei, algo loquaz, abundando neste assunto. A poesia me toca como um raio de luz na opacidade, na cegueira da existência e, certamente, alguma vez, "como uma aurora na noite". Assim como, depois do dia vivido, nos afundamos no bálsamo do sonho, da mesma forma parece-me suceder com a expressão poética. Ainda que não mais em condição de esquecimento, como no sonho, mas sim de aventura e revelação. Os signos são o pasto de minha fome, nunca satisfeita, de sentido; de sua busca tenaz. É por isto, sem dúvida, que minha poesia é, igualmente, irrigada pelo sangue do questionamento e da reflexão: monólogo, ou melhor, diálogo com os translúcidos, ou definitivamente impenetráveis, acontecimentos da existência, irremediavelmente vulnerados pelo agônico tempo humano.

— Como bem define o poeta cubano José Kozer, "o poema exige o sacrifício total". O que significa para você o processo de criação poética? Como o enfrenta?

— O processo de criação poética se me apresenta como uma tensão anímica que me reclama, para reduzir-se ou descarregar-se totalmente, sua cristalização na palavra. A risco de repetir-me uma vez mais, transcrevo a resposta dada, precisamente a José Kozer, na ocasião de uma entrevista que ele me fez em 1983: "Muito me interessa — disse-me Kozer — que fales um pouco de teu sistema poético em geral e de tua busca de uma espiritualidade cabal e ampla, que sirva de alça em um mundo buliçoso e materializado". Esta foi e é a minha resposta: "Tais afirmações não são indícios de um sistema poético que, ao menos em um nível consciente, carece de existência. Provêm, ao contrário, de um sentimento que se foi sedimentando paulatinamente. O sedimento de muitas e plurais experiências nas quais, longo tempo depois de havê-las vivido, remexi como quem lê nas cinzas.

Porém, embora não obedeçam a um sistema prévio, manifestam um obstinado esforço de edificação pelo verbo de um mundo — qualquer que seja seu alcance —, onde achar meu espaço próprio e livre, e minha verdadeira identidade. Meus poemas são, aspiram a ser, certamente, essa alça de que falas".

— Quais os mecanismos fundamentais de gestação de sua escritura poética?

— Creio ver nesta tua pergunta um vínculo muito estreito com a anterior, na qual me indagas o que significa para mim o processo de criação poética, pois de alguma maneira homologo gestação e processo, gemas na duração.

Sem mudar ponto ou vírgula, direi o que a respeito disse em uma ocasião. Quando a poesia está por suscitar-se em mim, experimento um complexo de sensações muito próximas à manifestação de um mal-estar. Algo que gravita com excesso sobre mim, que me perturba e exige, para recobrar minha rotineira normalidade (habitualidade), ser de algum modo expressado. Talvez por isto, ao concluir um poema a impressão imediata seja de alívio, à margem da impressão de êxito ou fracasso que dito texto posteriormente me cause.

Não acudo a fatores externos como condicionantes da "inspiração", exceto, às vezes, a música. Vibro de mim mesmo.

— José Miguel Oviedo certa vez apontou a afinidade de sua poesia com a de Huidobro, Paz, Mallarmé, Reverdy, no que se refere ao relevo dos valores visuais e espaciais do poema. A origem de tal relevo estaria mesmo na leitura destes quatro poetas ou seria outra sua fonte?

— José Miguel Oviedo referia-se em particular aos poemas de meu livro Folios de El enamorado y la muerte, que resenhava, e acertava ao falar de afinidades com esses grandes poetas, aos quais haveria de acrescentar, em primeiro lugar, a Apollinaire. Todos eles lidos e, no caso dos franceses, traduzidos em parte por mim (o que, como bem sabes, significa haver exercido uma leitura em profundidade e uma conseqüente maior atenção a seus poemas), todos eles, de algum modo e em proporções por certo não quantificáveis, afiançaram meu conceito e prática dos valores visuais e espaciais em função do discurso poético. Mas existe também outra fonte que considero importante. É a poesia clássica japonesa. Tanka e haiku, não somente por sua brevidade mas também e principalmente pela energia surgente e sugestiva do yo-haku, a margem branca ou o inexpressado; essa zona de silêncio eloqüente aonde nos remetem, se o sabemos sentir, estas sutis, profundas, essenciais apreensões dos fatos do coração e da natureza.

Tal aptidão de concisão e síntese, de especial estimação pelo espaço em branco, esse silêncio cuja pureza original vamos ferir e alterar, por outro lado, me parece que se manifesta nas páginas em prosa, em grande parte dedicadas à poesia, que até aqui escrevi.

Essas vozes distantes despertaram e despertam algo que é próprio de minha sensibilidade poética, de meu gosto pessoal, que assim se vêem corroborados por seu fecundo magistério.

— Discute-se com certa insistência se o Surrealismo teria sido uma influência vital ou mortal para a poesia francesa. No que diz respeito à poesia peruana, ao pensarmos tão-somente em nomes como César Moro e Emilio Adolfo Westphalen já teremos aí definida a extrema e vital importância deste movimento. Que importância você credita ao Surrealismo em sua própria obra?

— Para mim o Surrealismo exerceu direta e obliquamente uma removedora influência que não pode ser qualificada senão de vital e universalista. A grande poesia deste século, e em línguas daqui e de lá, à margem de todo tipo de fronteiras, tem sido possível graças à encarnação das libertadoras contribuições do Surrealismo. Os poderes mágicos da imagem, o libérrimo fluxo das associações verbais, a inserção surpreendente nessa zona intermediária entre a realidade e o sonho, e tanto mais, dão conta do que foi sua inevitável vigência.

Com efeito, tal como o dizes, na poesia peruana o Surrealismo enredou-se, quase com exclusividade, em César Moro, e parcialmente em Westphalen, dando os admiráveis frutos que todos conhecemos e gozamos. Em meu caso, como nos de outros poetas de minha geração (Jorge Eduardo Eielson e Blanca Varela, em especial), este movimento (resisto a chamá-lo escola) produziu efeito, junto à rica tradição poética hispânica, evitando-nos o enquistamento em uma retórica consabida e exangue. Segundo o crítico romeno Stefan Baciu, nos corresponde o rótulo de "parasurrealistas", o que me parece exato.

Esses princípios ativos do Surrealismo permearam minha expressão, conjugando-se com os da terra natal da tradição e servindo de corretivos ao que poderia ter sido uma excessiva e ancilosada gravitação desta última.

— A poesia encarna a realidade ao revelar-lhe sua precariedade, sua miséria irredutível. E evidenciar tal miséria é sua maneira extrema de torná-la fértil, sua tentativa obstinada de resgatar a abundância em pleno magma da miséria, da escassez. Acredita ser esta uma tarefa possível, o que tornaria a poesia uma paixão sem saída?

— As tarefas de revelação e resgate que reconheces como próprias da poesia (que considero certas) não são impossíveis. Século após século, como dia após dia, a poesia está atuando não somente na sensibilidade estética do homem, como também, e além do mais, paulatina e quase inadvertidamente, trabalha em sua sensibilidade moral, elevando-a, tornando mais lúcida sua percepção da condição humana. A poesia é, ou pode ser, uma paixão que jamais se esgota em si mesma. Ela nos oferece — salvando épocas, distâncias, culturas — um espaço de reconhecimento da unidade radical do ser humano, de sua identidade substancial. A poesia, neste sentido, alcança essa meta de verdade prática que, de acordo com Paul Éluard, lhe deve ser conatural. Congrega e apazigua, une e exalta. Conduz o homem aos mais altos e duradouros desígnios. Tenho dito e repetirei em tom de profissão de fé: a poesia é um agente de descobrimento e recuperação do humano no homem.

— Vem de Karl Kraus a afirmação segundo a qual todas as qualidades de uma língua têm sua raiz na moral. Concordaria, por extensão, que toda renovação da linguagem poética possui também como requisito fundamental a moral?

— Penso que todo homem é uma conduta e uma moral em ação. Iniludivelmente. Por isto, a afirmação de Karl Kraus concita meu interesse e reflexão. Assumo a verdade que revela e concordo, por extensão, que toda renovação da língua poética supõe necessariamente uma prévia mudança do que (algo pedantemente, me desculpo) chamarei as estruturas morais subjacentes a toda conduta, entre estas as da expressão e da comunicação. Um único exemplo a respeito: a confrontação ante os fatos da vida sexual e do erotismo, em nossa ética social contemporânea, vai ultrapassando os limites, sempre estreitos, de seu silenciar ou disfarce.

Por sua vez, a ética em que se apoia a linguagem poética pode ser enriquecida e estimulada a dar um passo mais além com as revelações que, entre outros rostos, a poesia pode brindar a sociedade na qual se produz e alenta.

— Ao longo dos tempos os poetas sempre se viram atribuídos de alguma missão entre os povos pré-colombianos falava-se no poeta como "aquele que faz com que as coisas se ponham de pé", Mallarmé o apontava como responsável pela "purificação das palavras da tribo" etc. , o que de certa forma ligava a criação poética à idéia de restauração. Neste sentido, concorda que a poesia seja, no dizer de Eugenio Montejo, "a última religião que nos resta"?

— Assim o é, de fato. E as missões que citas possuem essa clara felicidade do dito com as palavras justas. "Fazer com que as coisas se ponham de pé". Que admirável formulação! As coisas se põem de pé, despertam, passam a andar, a vida atua nelas e elas atuam em nossa vida.

Não fosse a poesia, como postula Eugenio Montejo, "a última religião que nos resta", seria, em todo caso, o último e supremo rito com que o poeta tenta consagrar ou exorcizar os avatares da vida humana.

— É conhecido e respeitado seu magnífico empenho em traduzir/editar poetas franceses, italianos, suecos, japoneses e brasileiros no Peru. É também sabido que parte de sua própria poesia encontra-se traduzida ao francês, italiano, sueco, japonês, além do grego, russo, inglês, húngaro e alemão — o que confirma um admirável fluxo de reconhecimento por seu trabalho exemplar. Contudo, no que diz respeito ao Brasil, e mesmo levando-se em conta as antologias que você organizou para o Centro de Estudos Brasileños (entre 1977 e 1985) da poesia de Mário e Oswald de Andrade, Cruz e Souza, Cassiano Ricardo, Sousândrade, entre outros, a sua própria poesia segue inteiramente inédita. Não se trata, porém, de um caso pessoal. A quase totalidade da poesia hispano-americana — e aqui vale ressaltar a indiscutível importância de autores como Pablo Antonio Cuadra, José Lezama Lima, Oliverio Girondo, Vicente Huidobro, Alvaro Mutis, Jaime Sáenz, Enrique Molina, Juan Liscano, Enrique Lihn, José Emilio Pacheco, Carlos Germán Belli, entre inúmeros outros — permanece inédita no Brasil, constituindo-se em um dos mais graves crimes contra a cultura registrados em todos os tempos. O que pensam, em geral, os escritores peruanos e, em particular, o Javier Sologuren, a respeito dessa "impenetrabilidade" da poesia hispano-americana no Brasil?

— Até algumas décadas atrás o Brasil era uma ilha rodeada de mar e selva, cujas manifestações literárias e culturais eram geralmente desconhecidas pelos hispano-americanos. Curioso fenômeno, pois sua língua escrita não constitui para estes uma muralha insanável. Ainda que mal, podemos nos entender.

A política brasileira de apoio, promoção e difusão de seus valores culturais — através de suas representações diplomáticas, de convênios editoriais ou outros meios — conseguiu que aqueles nos sejam familiares. Em particular aqui, onde muitos poetas peruanos traduziram um bom número de poetas brasileiros de todos os tempos, tal como o fazes notar.

Nada semelhante sucedeu, como em justa reciprocidade o merecem, com os poetas hispano-americanos, mesmo tendo em conta os de maior relevância (salvo contadas exceções), como bem o assinalas. Não existem, pois, as condições para o mútuo enriquecimento e a ampliação das experiências e perspectivas poéticas que seria lícito esperar.

Esta situação deficitária é realmente estranha. Essa "impenetrabilidade" pode ser devida, de um lado, à endêmica falta de apoio estatal para difundir nossa poesia e fazer outro tanto em resposta ao que tem feito teu país. Podemos pensar também em uma progressiva perda de interesse dos poetas brasileiros ante a dificuldade de dispor dos livros necessários, já que os nossos praticamente não saem do país.

Por sorte, tua empresa generosa de descobrimento e difusão da poesia hispano-americana — através da tradução, do comentário, da entrevista, da edição — vem oportunamente preencher esse grande vazio.

— Em que circunstâncias surgem em Lima as Ediciones de La Rama Florida? E qual a situação atual do mercado editorial peruano no que diz respeito à poesia?

La Rama Florida foi um pequeno empreendimento gráfico de caráter artesanal e doméstico. Uma impressora elementar, das chamadas Minerva, ordinariamente empregadas na impressão de cartões; umas tantas caixas de tipos móveis; uma ou outra ferramenta, papel e tinta. Desse ramo brotaram, ano após ano (mais ou menos doze), livrinhos de poemas tanto peruanos como estrangeiros, em uma incessante continuidade, em edições trabalhadas manualmente e de muito curta tiragem. Guardo muito boas recordações desta obra que empreendi, sem contar com bens de fortuna, com entusiasmo e carinho.

Todos sabemos — pelo menos aqui no Peru — que a publicação de textos poéticos não é negócio para os editores. Minha oficina e minhas edições, não sendo lucrativas, remediaram esta situação.

A ajuda econômica decidida e aberta do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia tornou factível, nestes últimos anos, a publicação de inumeráveis livros de poesia, ao lado de outros dedicados às disciplinas científicas, técnicas, científico-sociais etc. É um caso, sem dúvida, único. Quem não publica seus inéditos ou seus poemas reunidos é porque não deseja fazê-lo.

— A edição, este ano, de sua obra completa, significa o encerramento de uma etapa, de um ciclo?

— A edição, no ano que acaba de passar, de minha obra poética, que vai de 1939 a 1989, significa mais a mostra de uma etapa, larga, sem dúvida, em um decurso que sinto contínuo e desejo permanente. Obedece, pois, a essa incitação própria dos aniversários, ainda mais quando são prolongados e se dão em cifras redondas. Porém a vida é um continuum que rejeita, por sua própria natureza, toda divisão, toda artificiosa separação estanque. E eu me valho desta condição para dar título à minha obra...



Comentario privado al autor: © Floriano Martins, 2000, floriano@secrel.com.br
Opine sobre esta entrevista en la plaza de Ciberayllu.
Ciberayllu

Más crónicas en Ciberayllu

196/000414